terça-feira, 25 de março de 2014

FRAUDE NO LEITE? MAIS UM "ESCÂNDALO"?


Só descobriram mais esse escândalo dos 300 mil litros de leite aditivados com formol, soda cáustica e água oxigenada, porque o Ministério Público do Rio Grande do Sul não parou de olhar o que fazem ao leite naquele Estado, desde os outros escândalos. Aliás, faço um parêntesis para expressar meu espanto pelo uso da palavra escândalo, pois, do grego, ela quer dizer alguma coisa feita contrariamente à moral ou aos costumes vigentes. Contaminar o leite com tudo quanto é nocivo, dando-se de comer à vaca o que por natureza ela jamais buscaria comer, tudo em nome da alta produtividade, é a regra, não uma exceção. A exceção é o povo tomar conhecimento disso.
Não vejo nenhum zelo fiscal nos demais Estados. Gostaria de ver notícias tais: fiscalizamos tantos milhões de litros de leites distribuídos e não encontramos nenhum contaminado, a não ser pelo que se dá de comer e beber à vaca... Então, podemos imaginar, dado que o próprio IBGE admite que de cada 100 litros de leite consumidos no Brasil em torno de 40 (acho generoso esse número) não passa por qualquer tipo de fiscalização, além do pus, sangue, antibióticos, pesticidas, metais pesados, cálcio em excesso, gordura e colesterol, lactose, proteínas cancerígenas, quanto não andam a ingerir os galactômanos, em seu "leitinho" e "queijinho", "sorvetinho" e "tortinha", sim, no diminutivo, porque leite é coisa de bebês que o sugam do corpo de suas mães, não do corpo da mãe de bichos de outras espécies, de soda cáustica, formol e água oxigenada... aliás, essa eu usava quando menina para dissolver pus nas feridas. Já, soda cáustica, usávamos para fazer sabão da gordura dos porcos mortos para consumo familiar. Formol eu só fui conhecer na universidade, nos tanques dos biotérios onde ficavam imersos os cadáveres usados para dissecação. E tudo isso agora faz parte do leite que as pessoas engolem e nem podem sentir, porque os aromas estão bem disfarçados em todos os laticínios. Sim, se o aroma fosse o natural, repugnaria humanos o cheiro do leite da vaca, mesmo da vaca livre de toda tortura e da comida nojenta que é obrigada a ingerir, cheia de pesticidas, incluindo o glifosato.
E não falei de tudo o que dão para a vaca comer... e, que, quando ela encerra a gestação, como ocorre em qualquer fêmea, magicamente, vira leite. Sim, leite é a face branca do sangue. Esse nutre dentro do útero. Aquele, fora. Mas por prazo bem determinado. Prorrogar esse prazo natural é um absurdo e isso, sim, deveria ser considerado, no sentido grego do termo, um verdadeiro acinte à natureza mamífera.
E não falei da mastite e da laminite, dos gases e diarreias, do sofrimento atroz das vacas que não aguentam tanta exploração e secam em duas ou três gestações, sendo então encaminhadas para a câmara de sangria para virar carne de hambúrguer, cheia também dessa coisarada toda. E chamam a isso de comida. E me chamam de radical por não enfiar isso para meu estômago. Tem que ser muito radical para engolir uma fatia de queijo, comer um sorvete e tomar uma batida com leite, um pedaço de torta. Tem que ser radicalmente alienado para conseguir engolir tudo isso e ainda ficar "escandalizado" com notícias de fraudes no leite.
Nunca precisamos de leite de vaca. Se precisássemos dele teríamos nascido bezerros. O mesmo podemos pensar dos bezerros. Se precisassem de leite de mulher teriam nascido bebês humanos. Cada fêmea faz o leite exatamente como aquele bebê, não qualquer de seus irmãos já nascidos ou por nascer, precisa, muito menos para atender às necessidades nutricionais ou metabólicas de organismos de outras espécies. Fêmeas podem alimentar filhotes de outras espécies. Mas isso não quer dizer que filhos de outras espécies devam depender do leite delas.
Há uma sabedoria incrível no metabolismo da mãe, que interage com o do bebê no útero e a partir das informações compõe o sangue para nutrir o rebento lá dentro. Saído do útero, a ligação com a mãe faz com que seu metabolismo continue a produzir o leite com a quantidade de nutrientes que o bebê precisa naquela hora. O leite da primeira mamada do dia não é o mesmo da última mamada. Nem em mulher, nem em vaca. Violamos tudo quando forçamos as vacas a secretarem dezenas de litros de leite para alimentar humanos que já desmamaram de suas mães no primeiro ano de vida e assim deveriam prosseguir. Leite é para quem ainda não tem dentes. Botou dentes é sinal de que dispensa receber nutrientes do corpo da mãe. Simples assim.
Não há fraudes na composição do leite. O leite é hoje uma fraude. Tudo o que está nele, vindo da alimentação, da água, do ar, dos remédios que dão à vaca, porque nenhuma fêmea aguenta tamanha exploração (dos antes 3 litros de leite que a glândula mamária secretava, hoje extraem com motores elétricos de 30 a 90 litros por dia, haja tecido para resistir a tamanho impacto!), é aditivo que a natureza jamais desenhou para estar ali, no alimento destinado a suprir o bebê recém-nascido bovino. E dão isso para as mães humanas que secretam tudo no seu leite, e dão isso diretamente para os bebês humanos. E a radical sou eu? Vai faltar perdão!  

Sônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991). Co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993). Ex-voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1997-2000). Autora dos livros, "Ética e Experimentação Animal - fundamentos abolicionistas" (Edufsc, 2006); "Por uma questão de princípios" (Boiteux, 2003). Co-autora de "A violência das mortes por decreto" (Edufsc, 1998), "O corpo violentado" (Edufsc, 1998),"Justiça como Eqüidade" (Insular, 1998, esgotado). Colaboradora nas coletâneas, "Instrumento Animal" (Canal 6, 2007), "Éticas e políticas ambientais" (Lisboa, 2004), "O utilitarismo em foco" (Edufsc, 2007), "Filosofia e Direitos Humanos" (Editora UFC, 2006), "Tendências da ética contemporânea" (Vozes, 2000). Autora de dezenas de artigos editados nos sítios: http://www.svb.org.br/http://www.pensataanimal.net/; e na Revista Ethic@ (http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/). Coordena o Laboratório de Ética Prática, do Departamento de Filosofia da UFSC, é professora e pesquisadora do Programa de graduação Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Membro Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa. Coordena o Projeto de pesquisa: Feminismo ecoanimalista: contribuições para a superação da violência e discriminação especistas, revisando a literatura sobre defesa de animais e ecossistemas produzida por mulheres (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, 2009-2011). Membro fundador da Sociedade Vegana.

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